Introdução e objetivos PL 1904
No cenário político e social contemporâneo do Brasil, a discussão em torno dos direitos reprodutivos tem ocupado um espaço central. Entre os debates mais acalorados está a Proposta de Lei do Aborto 1904/2024, que promete ser um marco significativo na legislação brasileira.
Este é um tema complexo, entrelaçado com questões éticas, religiosas, de saúde pública e direitos humanos. A legislação atual brasileira, que permite apenas em casos de estupro, risco de vida para a mãe ou anencefalia do feto, tem sido criticada por não contemplar a diversidade de situações enfrentadas pelas mulheres. Além disso, a criminalização tem levado muitas mulheres a recorrerem a procedimentos inseguros, colocando em risco suas vidas e sua saúde.
Recentemente, um projeto de lei assinado por 32 deputados federais trouxe à tona um intenso debate sobre o aborto no Brasil. O Projeto de Lei 1904/2024, liderado pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL/RJ), visa equiparar qualquer procedimento realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio. Essa proposta inclui até mesmo os casos em que este é permitido pela legislação brasileira, como gravidez resultante de estupro.
O Código Penal Brasileiro, instituído em 1940, não estabelece um limite de semanas de gestação para a realização do aborto. Segundo os autores do projeto, naquela época, a possibilidade no último trimestre era considerada “impensável”. Eles argumentam que, se tal procedimento fosse possível, não seria classificado como tal, mas sim como homicídio ou infanticídio.
De acordo com o texto do PL 1904/2024, seriam acrescentados novos parágrafos a quatro artigos do Código Penal, estabelecendo que “quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples”. Isso significa que tanto a mulher quanto o profissional de saúde envolvidos em um aborto após esse período poderiam ser condenados por homicídio simples, cujas penas variam de 6 a 20 anos de reclusão.
A proposta gerou diversas reações, tanto de apoio quanto de crítica. Os defensores argumentam que, com a evolução da medicina, fetos a partir de 22 semanas têm chances significativas de sobrevivência fora do útero, o que justificaria a equiparação do aborto tardio ao homicídio. Já os críticos apontam para a complexidade dos casos em que o aborto é permitido, como em situações de risco à vida da mãe ou de fetos com anencefalia, e questionam a constitucionalidade da proposta.
O PL 1904/2024 ainda está em discussão na Câmara dos Deputados e promete ser alvo de intensos debates. Diversos grupos da sociedade civil, organizações de direitos humanos e entidades médicas já se mobilizam para discutir as implicações éticas, legais e sociais dessa proposta. O desfecho desse debate poderá trazer mudanças significativas para a legislação brasileira sobre o aborto.
Impactos Esperados da PL 1904
Andrea Hoffmann Formiga, presidente-executiva do Instituto Isabel, uma ONG dedicada à defesa da vida e à análise de políticas públicas, expressou seu apoio a textos legislativos que enfatizem a proteção à vida desde a fecundação até a morte natural. Segundo Formiga, essa visão é amplamente compartilhada pela sociedade, que, de acordo com ela, defende a preservação das duas vidas envolvidas — a da mãe e a da criança. Para ela, o aborto não deveria ser considerado uma política pública, pois não resolve problemas de violência nem de abusadores.
Em contrapartida, Raphael Parente, médico ginecologista e ex-secretário de Atenção Primária à Saúde durante o governo de Jair Bolsonaro, rebate os argumentos contrários ao projeto de lei. Parente, que também é o relator da resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proíbe a assistolia fetal — procedimento utilizado em abortos legais —, destaca que os argumentos de quem desaprova a medida são falsos, especialmente aqueles que alegam prejuízo ao acesso à saúde das mulheres. “Ninguém descobre gravidez com 22 semanas; isso é tão raro que chega a virar notícia na televisão quando acontece. Quanto ao acesso, é fácil: é só ir aos locais que realizam abortos com excludente de punibilidade. Interromper a gravidez não é saúde”, afirma Parente. Embora ele seja favorável ao projeto de lei, ele também ressalva que é necessário reavaliar a pena de 20 anos, que considera excessiva, e tornar mais clara a parte sobre o papel do médico em situações de risco de vida.
O projeto de lei em questão não se limita à esfera médica; ele também envolve uma significativa carga religiosa. O autor do projeto, o pastor Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), membro da bancada evangélica, defende uma legislação mais rigorosa sobre o aborto, e seu posicionamento é amplamente apoiado por seus colegas de grupo. O pastor Capelão Gilvani Silveira, diretor-técnico da Federação de Apoio às Associações, Igrejas e Ministros Evangélicos do Brasil (Faaimeb), argumenta que a Bíblia não menciona especificamente o aborto, mas enfatiza a sacralidade da vida. “Nas igrejas, pregamos o que a palavra nos ensina. Ela afirma que Deus nos dá a vida e apenas Ele tem o direito de tirá-la. Vamos matar uma criança porque ela tem origem em um estupro? Precisamos pensar essas polêmicas à luz das Escrituras”, defende Silveira.
O debate, que já é intenso, ganha novas dimensões com as perspectivas divergentes entre a defesa da vida desde a concepção e a autonomia das mulheres sobre seus corpos. De um lado, há uma forte argumentação em favor da proteção à vida em todas as suas formas, e do outro, uma preocupação com os direitos das mulheres e a realidade das situações de risco. As opiniões se entrelaçam, revelando um panorama complexo, onde ciência, religião, direitos humanos e políticas públicas se encontram em um dilema permanente.
Este cenário desafiador coloca o Brasil em uma encruzilhada legislativa, onde cada passo deve ser cuidadosamente considerado. Como sociedade, é fundamental que o diálogo continue aberto, honesto e inclusivo, para que se encontre um equilíbrio que respeite as diversas perspectivas e preserve os direitos fundamentais de todos os envolvidos. O futuro deste projeto de lei poderá não apenas definir rumos legais, mas também moldar os valores e as prioridades da sociedade brasileira para as próximas décadas.
Debates e Controvérsias
A proposta de alteração tem sido alvo de diversas manifestações contrárias. Na última quinta-feira (13), protestos aconteceram em várias cidades do país, demonstrando a insatisfação de muitos cidadãos.
Uma enquete no site da Câmara dos Deputados, até as 19h de quinta-feira, já havia recebido mais de 400 mil votos, dos quais 83% eram contrários ao projeto, enquanto apenas 17% concordavam totalmente com a proposta.
A médica Ana Costa, diretora executiva do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), publicou um artigo categórico em que condena o projeto, rotulando-o como “uma reedição do ‘Estatuto do Estuprador'”, acusação baseada na ideia de que a lei obrigaria mulheres a levar adiante gestações resultantes de estupro, sob pena de prisão.
O Cebes também aponta que o acesso tardio ao aborto legal é um reflexo da desigualdade na assistência à saúde, impactando principalmente crianças entre 10 e 14 anos, mulheres pobres, negras e residentes de áreas rurais. A instituição enfatiza que essas populações já enfrentam barreiras significativas para obter serviços de saúde adequados.
Diante da proposta, um grupo de 18 entidades do setor formou a campanha “Criança Não é Mãe”, que denomina as mudanças propostas como o “PL da Gravidez Infantil”. Segundo os organizadores do movimento, a alteração na legislação prejudicará principalmente as crianças menores de 14 anos, grupo que mais necessita de serviços de aborto após o terceiro trimestre.
Eles argumentam que, nessa faixa etária, há uma maior dificuldade em identificar ou reconhecer uma gravidez precoce, e em dois terços dos casos, o autor do estupro é um membro da própria família. Essa situação complexa frequentemente impede as vítimas de buscarem ajuda ou denunciarem o crime nas primeiras semanas de gestação.
A campanha também alerta para as severas implicações legais da mudança proposta. Se aprovada, a nova lei poderá condenar os envolvidos no aborto pelo crime de homicídio simples, com penas de prisão de até 20 anos. Em contraste, o crime de estupro tem uma pena estabelecida de cerca de 10 anos, ou metade do tempo.
Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelam que, em 2022, 74.930 pessoas foram estupradas no Brasil, sendo 88,7% das vítimas do sexo feminino e cerca de 60% com no máximo 13 anos de idade. Já o DataSUS aponta que, em 2019, aproximadamente 70 gestações foram interrompidas legalmente em crianças e adolescentes brasileiras com menos de 14 anos.
A campanha “Criança Não é Mãe” destaca que a aprovação do PL 1904/2024 representará um grave retrocesso nos direitos sexuais e reprodutivos garantidos por lei desde 1940. As mudanças propostas obrigariam meninas vítimas de violência a seguir com a gestação, ignorando as complexas realidades sociais e de saúde dessas jovens.
Processo de Tramitação da PL 1904
Na última quarta-feira, dia 12, em um movimento surpreendentemente rápido, os deputados decidiram em apenas 23 segundos que o PL 1904/24 seria tratado em regime de urgência. Este permite que o projeto seja levado diretamente ao plenário para votação, sem passar pelas comissões, que normalmente analisariam detalhadamente cada ponto da proposta. Essa decisão relâmpago levantou preocupações e críticas de diversos setores que argumentam que a análise apressada pode comprometer a qualidade da legislação.
Os defensores da urgência argumentam que algumas reformas são extremamente necessárias e não podem esperar os trâmites habituais, que podem ser morosos. Eles destacam a importância do projeto para resolver problemas imediatos e trazer melhorias significativas para a população. Por outro lado, os críticos ressaltam que a pressa pode levar a decisões precipitadas, sem a devida discussão e análise dos impactos a longo prazo. Eles defendem que o processo legislativo deve ser transparente e participativo, garantindo que todas as vozes sejam ouvidas.
Enquanto isso, no Senado, o presidente Rodrigo Pacheco adotou uma postura mais cautelosa. Ele garantiu que, ao contrário da Câmara, o Senado respeitará os trâmites normais, permitindo que o projeto seja devidamente analisado pelas comissões antes de ir da votação no plenário. Esta abordagem visa assegurar que todas as implicações do projeto sejam cuidadosamente consideradas, permitindo um debate mais aprofundado e equilibrado.
Perspectivas Futuras
Apesar das pressões, a aposta do governo é que o impasse prevaleça e o projeto não avance. Alexandre Padilha relembrou que a aprovação de um requerimento de urgência não garante a votação do mérito. Ele destacou que há mais de dois mil projetos com requerimentos de urgência aprovados na Câmara, muitos dos quais não foram votados. Apenas este ano, foram 76 requerimentos de urgência aprovados sem votação do mérito.
“O fato de ter sido aprovado um requerimento de urgência não significa votação do mérito. Nós temos mais de dois mil projetos com requerimentos de urgência aprovados na Câmara. Ano passado, foram mais de 230 projetos com requerimento de urgência que não foram votados. Só esse ano, foram 76. (…) Eu, inclusive, do que ouço dos líderes, acredito que não tenha clima, ambiente de se continuar o debate”, afirmou Padilha.
O futuro do PL 1904/2024 permanece incerto, com um cenário de disputa acirrada entre a Frente Parlamentar Evangélica e o governo federal. Enquanto a bancada evangélica busca avançar com o projeto, o governo e movimentos de proteção aos direitos das mulheres e crianças trabalham para garantir a manutenção da legislação atual. A decisão final dependerá da capacidade de articulação e negociação entre as diferentes forças políticas na Câmara dos Deputados.